Democracia direta e ecologica em Cornelius Castoriadis

Por Yavor Tarinski

Tradução por Guilherme Cardoso

O filósofo Cornelius Castoriadis foi frequentemente creditado por dizer que “a democracia é o regime da auto limitação”. Mas como para ele a única forma democrática verdadeira é a democracia direta, essa afirmação pode parecer um pouco estranha. A democracia direta passou a ser concebida por muitos, incluindo vários críticos, como um regime que desconecta a sociedade das leis e regulamentos, resultando em sua despolitização e degradação. Esse conceito, compreensivelmente, levantou preocupações sobre quais seriam os resultados das ações mais excessivas das massas.

A essência da democracia direta, entretanto, conforme apresentada por Castoriadis, difere consideravelmente dessa lógica caótica e niilista. Para ele, o significado primordial do termo democracia é político, sendo antes de tudo um regime em que todos os cidadãos são capazes de governar e ser governados — sendo ambos os termos (democracia e autolimitação) indissociáveis. A democracia, em outras palavras, é entendida como uma forma de auto instituição societária explícita, por meio da reflexão e da autolimitação.

Segundo Castoriadis, a democracia não é um mero processo de tomada de decisão coletiva que pode existir paralelamente ou dentro de quadros oligárquicos não democráticos, conforme proposto por pensadores como Jürgen Habermas ou Chantal Mouffe. Para ele, a democracia é antes a base do projeto de autonomia — uma condição social em que a sociedade não reconhece limites externos ao seu poder instituinte. Ou seja, o contrário de diferentes formas do que Castoriadis chama de “heteronomia”, sociedades onde as leis e regulamentos são derivados de fontes extra-sociais como mercados capitalistas, estados-nação, deuses, necessidade histórica, etc., os únicos limites de uma comunidade democrática resultam de sua autolimitação por meio da postulação coletiva da lei.

Castoriadis observa que são as instituições e as leis que sugerem o que não pode ser feito, mas também o que deve acontecer, que fazem a sociedade funcionar. Sem esses regulamentos, pensa-se, os laços sociais se desintegram. Em suas próprias palavras “a sociedade está ali precisamente no momento em que há uma autolimitação de todos os irmãos e irmãs”. Sua ênfase na democracia é, neste sentido, não uma rejeição da organização e da legislação, mas de certas fontes de organização e legislação.

Formas de Limitação Social

Cada sociedade não apenas oferece, mas de alguma forma impõe certos papéis, valores, crenças, modos de vida, etc, para seus membros individuais. Cada forma de sociedade fornece apenas um certo conjunto de possibilidades para sua população, uma vez que não se pode ser tudo nem fazer o que quiser. Assim, podemos falar aqui de limitação, mas apesar das conotações negativas deste termo, certamente também carrega um traço positivo: ao proibir certas coisas, a sociedade simultaneamente traça padrões do que deve ser feito, dando assim um significado distinto à sua forma de vida.

Cada ordem social determina diferentes fontes para esta proibição. Mas o que significa cultivar um ambiente autônomo e essencialmente democrático é que as limitações serão auto impostas pela sociedade em sua totalidade. Na heteronomia, por outro lado, a proibição está sendo definida extra-socialmente. Isso não significa que tais fontes extra-sociais (ou seja, fontes que são externas à sociedade real e viva, como deuses, estados-nação, heróis fundadores ou leis naturais quando são apresentados como imunes à influência humana), não estão de alguma forma conectados ou alcançáveis ​​pela sociedade, mas que monopolizam o poder, tirando-o da população em geral. De acordo com Castoriadis, eles ainda são um produto da capacidade de autocriação da sociedade. É por causa dessa relação que uma mudança política revolucionária é concebível.

Claro, embora toda sociedade seja baseada em algum conjunto de limitações, as pessoas nem sempre obedecem a elas. A história está repleta de exemplos de indivíduos, comunidades e até sociedades inteiras que romperam com as normas sociais e proibições estabelecidas. A questão é “por que”? Ao contrário do que muitos críticos da autonomia argumentam, pessoas transgredindo as limitações populares não é um fenômeno limitado à democracia direta aparentemente caótica. De fato, pode-se argumentar que, paradoxalmente, essa tendência é mais comum na heteronomia, devido ao seu caráter não participativo, pois as pessoas nessas sociedades se sentem alienadas das leis e instituições.

Esse paradoxo se deve à relação desarmoniosa entre o indivíduo e a coletividade social. Não importa quais papéis a sociedade dite a seus membros singulares, sempre haverá alguns entre eles que estarão rompendo com as proibições. Na verdade, a individualidade de uma pessoa nunca é completamente determinada pelo papel que está sendo atribuído a ela. Na verdade, essas ultrapassagens de limitações, a quebra da norma, potencialmente contêm os germéns de novas possibilidades e podem se tornar as sementes da transformação social.

Na heteronomia, entretanto, as limitações são enganosamente concebidas como derivadas de uma fonte externa a nós mesmos, muitas vezes derivadas de restritas elites gerenciais, que são as únicas capazes de intervir e alterá-las. Isso porque os regimes heterônomos baseiam-se no ceticismo quanto à capacidade de grandes coletividades de determinar conscientemente seus destinos. Assim, apesar das experiências democráticas históricas de autonomia, como a Polis ateniense ou a Revolução Húngara de 1956, por mais curtas que possam ter sido, existe essa falsa visão de mundo da incapacidade popular de se auto-instituir sendo constantemente reproduzida por genuinas entidades heterônomas como o Estado ou o mercado capitalista para justificar sua própria existência.

A democracia, por outro lado, é baseada na rejeição de leis, ações e pensamentos fixos e objetivos. Este conceito aparentemente “niilista” sugere que tudo é possível e certos perigos dão razão para as pessoas serem cautelosas. Por exemplo, em relação à ausência de uma “norma de normas”, Castoriadis se refere ao conceito grego de húbris [1]. Segundo ele, a húbris não pressupõe simplesmente a liberdade, mas a inexistência de normas fixas, a imprecisão essencial das definitivas consequências sociais de nossas ações. No entanto, isso não significa que estejamos destinados a enlouquecer, mas que há espaço para nós mesmos criarmos nossos significados, leis e limitações, pois, como sugere Castoriadis, a húbris existe onde a única ‘norma’ é a autolimitação.

Castoriadis sugere que, apesar do perigo de atos monstruosos que a democracia apresenta, a democracia simultaneamente abre a possibilidade de autocrítica e autoavaliação, que estão no cerne da autolimitação. Traços dessa reavaliação crítica podem ser encontrados na peça de Eurípede “As Troades” (As Mulheres de Tróia), produzida em 415 aC durante a Guerra do Peloponeso. Representa o comentário crítico de um ateniense sobre seus concidadãos e o massacre que eles conduziram ao povo da ilha de Milos, no mar Egeu. Com sua peça, Eurípides tenta visualizar a húbris grega, encenando-a um ano após o massacre, alertando os atenienses com as palavras “que monstros, nós somos”. Ele sugere que, embora o povo de Atenas possa decidir e fazer certas coisas, eles nem sempre devem implementá-las na prática, cabe a eles determinar qual ato é “monstruoso” e qual não.

Democracia Direta e Autolimitação

A autolimitação dentro da democracia molda decisivamente a relação entre a vontade individual e a tomada de decisão coletiva. Uma sociedade autônoma permite que todos os seus membros participem diretamente dos processos democráticos, dando-lhes espaço para expressar suas opiniões, necessidades e propostas. Aqui está o aspecto mais positivo da autolimitação democrática: ela potencialmente predispõe a sociedade à legalidade. Ao permitir que todos os cidadãos participem da formulação de todas as leis e regulamentos, a democracia direta torna a cidadania o único criador de limitações sociais, tornando assim menos provável a necessidade de transgressão desses limites.

No entanto, haverá momentos e tópicos em que a unanimidade não será alcançada e algumas opiniões particulares serão contrariadas pela vontade coletiva. Nesses casos, aqueles que discordam do a decisão terá de cumpri-la, independentemente do grau de desacordo. Decisões democráticas raramente são unânimes e, embora possamos organizar processos para dar a todos a oportunidade de expressar suas opiniões, tornar suas necessidades conhecidas e compreendidas e apresentar seus argumentos, estes ainda serão, às vezes, contrariados pela vontade coletiva. Isso significa não apenas que o que um indivíduo deseja não ocorre, mas também significa que às vezes os indivíduos serão obrigados a cumprir leis com as quais não concordam.

Alguns argumentam que isso significa que há um elemento ‘inerradicável’ de heteronomia mesmo dentro da sociedade mais democrática, mas é importante fazer uma distinção entre as decisões que são feitas sem qualquer contribuição por aqueles que são afetados por elas, e aquelas em que todos são afetados têm a oportunidade efetiva de participar. O termo ‘heteronomia’ é melhor reservado para o primeiro. E embora a autonomia seja caracterizada por este último, inevitavelmente significa que às vezes os indivíduos são forçados a obedecer a leis que não teriam escolhido para si próprios, caso contrário, não podemos falar de tomada de decisão.

Um exemplo de tal relação é a atitude de Sócrates em relação às leis e instituições da Atenas Antiga. Ele percebia os regulamentos da polis como seus e se sentia obrigado a se submeter a eles, mesmo quando discordava fortemente. Essa atitude derivava, em grande medida, de seu reconhecimento e gratidão pelo papel da cidade em sua educação, sem falar nas possibilidades que isso lhe dava de levar uma vida verdadeiramente livre. Ele sabia que havia aderido voluntariamente à polis ateniense e tinha o direito de participar de sua auto-instituição, o que o fazia se reconhecer como integrante do coletivo social, mesmo quando discordava de algumas das decisões coletivas.

A submissão às leis e regulamentos, no entanto, nunca pode ser totalmente garantida. Abordagens heterônomas normalmente prescrevem punição severa aos transgressores através de aparatos de opressão. Nesses casos, apesar da ameaça penal, existe um forte impulso das pessoas para transgredir as leis, uma vez que não têm a menor oportunidade de participar de sua formação e, portanto, se sentem alienadas delas. Isso, entretanto, não significa que nas condições democráticas de autonomia, a obediência aos regulamentos seja inteiramente voluntária. Mas, devido à natureza participativa da autolimitação, os cidadãos sentirão, em um grau mais amplo, as proibições sociais como suas e serão menos tentados a superá-las. Isso não descarta o fato de que mesmo sob a democracia, em sua forma mais pura e direta, a sociedade terá que ser capaz de impor suas decisões coletivas àqueles indivíduos que continuarão a transgredi-las.

Sobre a contaminação do projeto revolucionário

Embora a democracia seja impensável sem autolimitação, em certos momentos históricos ocorreram múltiplas contaminações do pensamento revolucionário que separaram esses conceitos. O movimento dos trabalhadores em geral, e especificamente o marxismo e o próprio Marx, foram desde o início imersos em uma atmosfera na qual o crescimento das forças de produção, o crescimento econômico administrado pelos trabalhadores, tornou-se o critério universal para a emancipação social. Para esses pensadores e ativistas, a produção era considerada o principal lócus de toda a vida pública, e a ideia de que o progresso poderia e continuaria indefinidamente era tida como certa. Este abraço do imaginário capitalista contaminou o projeto de autonomia da classe trabalhadora. Uma sociedade autônoma é completamente incompatível com a ideia de domínio, defendida pelo paradigma do capitalismo de crescimento econômico ilimitado. Em vez disso, uma sociedade autônoma e desalienada assumiria por natureza o papel de administradora do planeta.

Castoriadis sugere que, se os projetos de autonomia e crescimento econômico contaminaram um ao outro, é preciso saber distingui-los, o que não é nada fácil. Isso não significa que devemos fazer uma escolha entre o progresso material ou o primitivismo voltado para o meio ambiente. Não estamos falando em abandonar a pesquisa científica sob o pretexto de que algumas coisas muito perigosas podem sair delas, mas que existem, no entanto, alguns resultados muito perigosos que podem resultar da transição da pesquisa para a sua aplicação econômica, o que levanta questões que devem ser negociado democraticamente pelo coletivo. É aqui que entra a auto limitação democrática.

Hoje, mais do que nunca, a questão de estabelecer controles sobre a evolução da ciência e da tecnologia se coloca de maneira radical e urgente. O desenvolvimento desenfreado da tecnociência, impulsionado apenas pela competição, mostra-se destrutivo para o planeta e também para nós, gerando uma crise de caráter existencial. Castoriadis apela para quebrar a ilusão atualmente prevalecente de onipotência que a humanidade sente. É verdade que somos, como ele sugere, habitantes privilegiados de um planeta que talvez seja único no universo. Mas nossa própria existência depende disso e de certas condições frágeis, que nossa civilização está prestes a romper e até destruir. Para evitar a catástrofe que se aproxima, a humanidade precisa reconsiderar todos os valores e hábitos que nos governam. Isso não significa que devemos abandonar o conhecimento e a ciência e retornar às formas primitivas de existência, como sugerem algumas tendências “lifestyle” modernas. [2]

Abandoná-los significa renunciar à nossa capacidade de ser livres. Mas a parte complicada é que, como explica Castoriadis, o conhecimento é como o poder — requer cautela. Devemos, portanto, pelo menos tentar compreender o que nossos pesquisadores estão em processo de descoberta e estar atentos às possíveis repercussões do que estamos prestes a aprender. Aqui, a questão da democracia surge novamente, em múltiplas formas. Sob a ordem oligárquica atual, e dentro das estruturas hierárquicas atuais, a palavra final sobre todas essas questões está nas mãos de políticos competindo entre si, burocratas corruptos ou oligarcas de negócios, com restritos tecnocientistas como seus conselheiros. A sociedade em geral está, portanto, sendo excluída da determinação política de como o conhecimento adquirido deve ser usado e quais objetivos devem ser estabelecidos antes da pesquisa científica futura.

Autolimitação e Educação

Entre as principais justificativas para a exclusão do público em geral da tomada de decisões sobre questões de caráter supostamente científico está a falta de educação adequada do público nessas questões. Esse argumento é essencialmente paradoxal, entretanto, uma vez que, na maioria das vezes, os próprios representantes políticos e empresários contemporâneos carecem desse conhecimento e são movidos apenas pela fome de poder.

Em uma sociedade democrática, a centralidade da educação está fora de discussão. Em certo sentido, pode-se dizer que a democracia direta é uma imensa instituição de educação continuada, um processo permanente de autoeducação de seus cidadãos, e não poderia funcionar sem isso. Uma sociedade democrática deve apelar constantemente à atividade lúcida e à opinião de todos os cidadãos, pois por sua essência é de caráter reflexivo. Isso é exatamente o oposto do que ocorre hoje, com o reinado de políticos profissionais e todos os tipos de “especialistas”.

O problema da educação não pode ser resolvido por mera “reforma educacional”, como muitas vezes é defendido por governos parlamentares de vários tipos, uma vez que, como sugere Castoriadis, a educação começa com o nascimento do indivíduo e continua até sua morte. A educação ocorre em todos os lugares e sempre. Ela está incorporada na vida cotidiana e na cultura que ocorre na cidade. Ele nos convida a comparar a educação que os cidadãos atenienses receberam quando participaram da autogestão [3] da pólis ou assistiram a encenações de tragédias com o tipo de educação que um telespectador de programas de TV ou eleitor recebe hoje. Portanto, determinar certas limitações requer, antes de mais nada, a inclusão educativa de toda a sociedade nos assuntos políticos, para que a autolimitação seja possível.

Ecologia e Democracia

O que foi dito acima nos fornece a base para repensar a maneira como vemos a ecologia — um termo fortemente conectado à autolimitação. Durante anos, as elites políticas, cientistas ambientais e especialistas discutiram e decidiram sobre o estado do meio ambiente a portas fechadas. Do século 19 em diante, centenas, senão milhares, de tratados ambientais foram assinados dessa maneira, com resultados que podem ser rotulados como questionáveis, na melhor das hipóteses. O resto da sociedade deve conceber a ecologia em um “amor pela natureza” romantizado e semimitologizado.

Castoriadis insiste que a ecologia é, acima de tudo, essencialmente política. Ele argumenta que a ciência é, por si mesma, incapaz de (e não deveria) estabelecer seus próprios limites e objetivos. Se a pesquisa científica for definida para descobrir algo, o fará, mesmo que isso signifique encontrar uma maneira de destruir o planeta. Isso não significa que a ciência seja inerentemente falha, mas que por si só não inclui a deliberação democrática que pode determinar o que é “bom” e o que é “errado”. Em outras palavras, a pesquisa científica tem um caráter essencialmente social.

A ecologia não é científica, nem tecnofóbica. É, antes de tudo, a necessidade de autolimitação das sociedades humanas em relação ao meio ambiente, de cujas frágeis condições depende a própria existência da humanidade. Castoriadis remonta essa lógica à atitude dos gregos antigos. Ele argumenta que eles não se baseavam no equilíbrio e na harmonia com a natureza, mas no reconhecimento dos limites ambientais de nossas ações e da necessidade de autolimitação.

Mas, para que a ecologia supere o ambientalismo atual e se mova em uma direção revolucionária, segundo Castoriadis, ela deve ter como objetivo provocar mudanças profundas na atitude psicossocial diante da vida do homem moderno, ou seja, no imaginário da humanidade. A ideia de que o único objetivo da vida é produzir e consumir mais — uma ideia que é ao mesmo tempo absurda e degradante para os seres humanos — deve ser desafiada e abandonada; o imaginário capitalista de pseudo-domínio pseudo-racional e de expansão ilimitada deve ser abandonado. Além disso, deve-se reconhecer que uma mudança tão profunda só pode ser alcançada pelas pessoas trabalhando em nível de base. Um único indivíduo, ou uma organização, pode, na melhor das hipóteses, apenas preparar, criticar, incitar, esboçar orientações possíveis e provocar mudanças na coletividade social. Assim, uma abordagem ecológica, essencialmente revolucionária, só pode ter um caráter social.

Decrescimento e autolimitação

Uma tendência importante entre os círculos ecológicos hoje em dia se tornou o “paradigma do decrescimento”. É baseado em uma teoria de redução radical do impacto humano sobre a natureza por meio de crescimento econômico negativo deliberado. Até certo ponto, é influenciado pela crítica de Castoriadis à obsessão com a expansão econômica, encontrada entre os regimes capitalistas, bem como os socialistas [4].

Um problema com essa tendência, entretanto, é que ela coloca a retração econômica no centro da mudança social, como o próprio nome sugere. Este movimento geralmente se concentra na parte técnica de como tal processo pode ocorrer, ao invés de como reestruturar radicalmente a base organizacional da sociedade como um todo. Assim, pessoas dessa tendência muitas vezes se viram propondo reformas dentro do regime parlamentar, como aconteceu, de maneira semelhante, com os defensores dos bens comuns. Nisso, podemos detectar a reprodução da loucura pseudocientífica das tecno-fixações além da política.

A noção de autolimitação de Castoriadis difere significativamente a este respeito. Embora reconheça a imensa importância de reduzir nossas economias a níveis ambientalmente saudáveis, sugere, no entanto, que esse processo deve ser precedido pela redução da escala do poder político, ou seja, de poder oligárquico para democrático direto.

Em certo sentido, o decrescimento pode ser visto como uma autolimitação restrita à esfera econômica, que por si só é problemática de várias maneiras, que se complementam mutuamente, se não for incluída em um projeto político holístico que abrange todas as esferas da vida humana. Em primeiro lugar, participa do imaginário atual do economicismo, entendendo a economia como a atividade humana mais elevada. Assim, tenta navegar a mudança social ao longo das linhas econômicas, já esboçadas pelo capitalismo. Em outras palavras, restringe a possibilidade de alteração social radical a formas alternativas de consumo, fontes de energia renováveis, métodos de produção ambientalmente corretos, etc., sem levar em conta sua escala ou quem podem ser os beneficiários de tais práticas.

Em segundo lugar, ao determinar como seu objetivo principal a criação de uma “sociedade de decrescimento”, ela praticamente deixa em aberto a abordagem política por meio da qual será implementada. Se o único objetivo é diminuir a abrangência econômica da humanidade sobre o meio ambiente, todas as estratégias políticas podem ser usadas. Isso por si só é muito problemático. A sustentabilidade ambiental poderia ser reforçada, por exemplo, por um regime totalitário (como o eco-fascismo) em detrimento dos direitos democráticos e humanos. Isso pode significar que a atual crise ecológica pode ser evitada para apenas lançar a humanidade em outra crise política, social e cultural, provocada pelo caráter distópico do totalitarismo. Assim, diminuir o impacto destrutivo de uma esfera humana apenas por meios econômicos não será suficiente. Há necessidade de uma diminuição geral, tendo a autoridade como principal alvo para essa diminuição, descentralizando-a até as bases, onde as próprias pessoas repensarão sua relação com a natureza e consigo mesmas.

Conclusão

A democracia, como parte indissociável do projeto de Autonomia, é a dupla autolimitação dos regulamentos e leis intrassociais, necessária para manter a integridade de nossas sociedades por um lado; e os limites que colocamos diante de nossas atividades em relação à natureza, de outro. Mas, para ser eficaz, a democracia deve ser desligada da significação imaginária de domínio racional universal, que há muitos anos contamina o pensamento revolucionário. Podemos ver claramente o crescimento econômico contemporâneo sendo forçado com o custo da maioria dos direitos democráticos básicos. Assim, a democracia também, em sua forma direta e mais autêntica, não pode ser alcançada por meio do progresso tecnológico ou da abundância de recursos, mas pela autolimitação deliberativa da própria sociedade.

Em um mundo de crescimento econômico ilimitado e fome de poder, aqueles que sentem a proibições mais duras são as pessoas e comunidades que se esforçam para limitar a autoridade daqueles que exploram a humanidade e a natureza para seu lucro exclusivo. Isso não deveria nos surpreender, já que, como sugere Hannah Arendt, a noção de tudo é possível é uma ideia que pode ser encontrada em regimes totalitários como o nazismo. Mas ao contrário das numerosas tendências ‘autônomas’ e anarquistas que buscam independência individual ilimitada em um mundo sem instituições, a auto-instituição democrática proposta pelo projeto de Autonomia em Castoriadis pode dar origem a uma liberdade política real para os cidadãos criativos de uma sociedade vital. Isso requer, no entanto, que movimentos sociais e indivíduos politizados abandonem a conveniência de grupos ativistas fortemente ideologizados com caráter sectário e mergulhem, em vez disso, nos assuntos públicos de suas cidades e sociedades, se auto-organizando ao lado de seus concidadãos na tentativa de se auto-instituir o espaço público do amanhã. Essa pode ser nossa única esperança de preservar as frágeis condições planetárias que nos permitem existir, as mesmas condições que o sistema atual está em vias de destruir.

Notas:

[1] A Húbris é um conceito grego que pode ser traduzido como “tudo que passa da medida; descomedimento” e que atualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, presunção, arrogância ou insolência (originalmente contra os deuses), que com frequência termina sendo punida. Resolvi deixar o termo original, pois acredito ser mais coerente com o propósito do texto. Poderia ser possível traduzir o termo como “arrogância”.

[2] Aqui Tarinsky faz referência ao “anarquismo lifestyle” ou “anarquismo como estilo de vida”. Termo cunhado por Murray Bookchin, em sua crítica a tendências subjetivistas e segundo ele, românticas e irracionalistas do anarquismo, sendo uma dessas o “anarco-primitivismo”. Pra entender a crítica de Bookchin, recomendo a leitura direta do texto, disponível em:

https://bibliotecaanarquista.org/library/murray-bookchin-anarquismo-social-ou-anarquismo-de-estilo-de-vida-um-abismo-intransponivel

[3Importante salientar que nem Yagor Tarinsky, tão pouco Castoriadis tentam “transportar” a democracia da polis grega como modelo universal, nem isento de contradições. Mas sim observar as qualidades desse modelo, apesar de suas limitações de tempo e lugar.

[4] Em referência a URSS e países correlatos.

Source: Autonomia & Crítica

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